Sal e Luz: o caráter distintivo do cristão e o seu amor à justiça

Sal e Luz: o caráter distintivo do cristão e o seu amor à justiça

Nos últimos dias eu tenho sido espancado pela realidade do lugar onde vivo. Para contextualizar os que não me conhecem, eu sou missionário no interior do estado mais pobre da federação brasileira. O nível de injustiça que eu presencio aqui é abismal. Salários irrisórios para cargas de trabalho desumanas, famílias completamente desfiguradas pela perda do poder familiar (geralmente por conta de abuso sexual ou vício em entorpecentes), pobreza extrema (as estatíticas são muito mais gentis do que a realidade), crime e corrupção em níveis alarmantes para uma cidade tão pequena e uma desesperança geral em relação a qualquer melhoria. Isso tem me feito pensar sobre o Reino Vindouro, e sobre como neste reino não haverá injustiça de qualquer forma. Tenho desejado intensamente este reino. Ao mesmo tempo, tenho ficado constrangido com a letargia cristã face a tudo isso. Não há como dissociar uma igreja sendo implantada de uma melhora significativa na vida das pessoas, afinal a Igreja deveria ser um farol para o mundo, um apontamento para a realidade gloriosa que é ser governado, por toda a eternidade, por Jesus Cristo. Todo cristão é chamado para ser um servo e uma testemunha (e é por isso que o evangelismo e a ação social não são opostos). Lucas 22.27, nos mostra que Jesus esteve entre nós como o que serve. A diakonia (serviço) e a martyria (testemunho) são inseparáveis.

Veja, não estou falando sobre a cristianização da sociedade. O Reino de Deus é muito mais do que isso. É o domínio na vida de todas as pessoas que reconhecem Jesus como seu senhor, o que no reinado eterno de Cristo será uma unanimidade social, porém, não é assim hoje. A evangelização ainda é um evento e a responsabilidade social da Igreja tem sido negligenciada em muitos níveis. O medo – justificável – de politizar o evangelho tem nos impedido de tocar feridas sociais que precisam ser curadas. Só precisamos fazer isso à luz do evangelho, e sem dissociar nosso serviço à igreja do nosso serviço à comunidade. Todos conhecemos a parábola do Bom Samaritano, e ao analisar essa parábola, vemos que o sacerdote e o levita não podiam alegar que seu chamado era trabalhar no templo como desculpa por sua, vergonhosa, negligência em relação ao homem que havia sido assaltado e roubado. O evangelho muda o homem, e se o evangelho nos faz semelhantes à um Deus justo, é impossível ser tocado pelo evangelho e não se importar com a fome, com a guerra contra a família, com o racismo, com a violência sexual e doméstica, com as guerras e com tudo o que tem ferido a esperança.

O sal da terra e a luz do mundo

Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens.

Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte;

Nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a todos que estão na casa.

Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus. Mateus 5:13-16

Acima, Jesus expressa o que Ele esperava dos seus seguidores na sua relação com o mundo no qual eles estavam. John Stott, em seu livro “O cristão em uma sociedade não cristã”, ensina que Jesus queria nos alertar para, basicamente, duas coisas. A primeira é de que, nós cristãos, precisamos ser distintivos, diferentes daqueles que não são cristãos. O mundo é escuro, Jesus deu a entender, mas vocês devem ser a luz. O mundo está em decomposição, mas vocês devem ser o sal que a impede. A Bíblia dá bastante atenção a este tema. Deus chama um povo para si mesmo, e a vocação desse povo é ser santo, diferente. Se perguntarmos o que Jesus quis dizer com sermos o sal e a luz do mundo, ele quis dizer que não devemos ser iguais aos que nos cercam. Ele diz para não sermos ‘iguais a eles’ (Mt 6.8), para exercermos uma justiça maior, um amor mais amplo (até mesmo para com os inimigos), uma devoção mais profunda (como a das crianças aos seus pais) e uma ambição mais nobre (buscando primeiro o reino e a justiça de Deus). A segunda coisa é de que cristãos devem ser influentes. Sermos moralmente e espiritualmente distintos não nos dá carta branca para sermos segregados (ou para segregar). A luz deve brilhar na escuridão e o sal precisa ser colocado na carne para impedir sua decomposição. Os cristãos devem influenciar a sociedade mesmo quando esta rejeita a fé cristã. A martyria (o testemunho) não está atrelado à sua aceitação, mas à existência do cristão. Todo cristão é uma testemunha e esse testemunho precisa ser tocado. Temos um hábito de lamentar os padrões sociais caídos com um ar desesperado que é um tanto farisaico. Se no cair da noite, uma cidade fica no escuro, o que se pergunta é: “onde está a luz?”. Alguém precisa acender o fogo, ligar a luz. Se a escuridão e a podridão abundam, a culpa é nossa e precisamos assumir a nossa responsabilidade.

Um caminho prático

O que na prática, significa sermos sal e luz do mundo? Como podemos dar passos concretos para começarmos a influenciar o mundo e apontar para a realidade futura do reino eterno de Cristo?

  1. Oração

“A oração do justo é poderosa e eficaz.” – Tiago 5.16

A oração nos capacita a entrar no campo do conflito espiritual de forma segura, pois nos alinha com o propósito de Deus de forma que Seu poder é liberado e os principados e potestades são contidos.

  1. Evangelismo

O evangelho transforma pessoas. “Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1.16). A fé leva ao amor e o amor leva ao serviço. O serviço amoroso aos necessitados e oprimidos é uma consequência inevitável de uma vida transformada. Precisamos ser sal e luz, mas só o evangelho pode produzir sal e luz (e aqui está o fundamento de que o evangelismo sempre tem a primazia sobre a ação social, ainda que o cumprimento de um não devesse suprimir o cumprimento do outro). John Stott ensina que “quando o evangelho é pregado de forma fiel e ampla, ele não só leva à uma renovação radical, mas cria uma atmosfera em que blasfêmia, egoísmo, ganância, desonestidade, imoralidade, crueldade e injustiça não florescem com tanta facilidade. Um país permeado pelo evangelho não é um solo em que ervas-daninhas conseguem se arraigar com tanta facilidade”. Ou seja, o evangelho também transforma os aspectos caídos das culturas.

  1. Demonstração social

A verdade é poderosa quando é argumentada, mas é ainda mais quando demonstrada. Atos de justiça, engajamento em projetos que visam diminuir a injustiça no mundo são formas que os cristãos podem usar como demonstração da realidade transformada que vivem. Ainda esbarramos no medo da politização do evangelho, e esta deve ser combatida. Porém, entendendo que a preocupação primária da fé cristã é amar a Deus (o primeiro e maior mandamento) e que nenhum programa político pode reivindicar ser a expressão da vontade de Deus, seremos livres dos utopismos humanos que nos fazem cair nas garras das suas ideologias, alterando, inclusive, as razões pelas quais combatemos as injustiças. Além disso, o nosso envolvimento social precisa estar integrado à nossa vida espiritual. Madre Teresa de Calcutá, ao ser interpelada sobre a razão de passar só as manhãs nos asilos em que trabalhava, disse que trabalhar sem oração é alcançar apenas o que é humanamente possível. O reino de Deus não é deste mundo. Nós não estamos interessados na caixa das possibilidades humanas, nós queremos as possibilidades divinas.

  1. Unidade

“Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste.” – João 17:21

“Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.”-  João 13:34,35

Deus criou a Igreja como uma comunidade remida que representa os ideais de Seu Reino. Existe poder na evangelização e na oração. Existe ainda mais poder se fizermos isso juntos. Há poder no testemunho individual, mas ainda mais poder numa “grande nuvem de testemunhas” (Hb. 12.1). Um corpo para funcionar precisa trabalhar em perfeita sintonia a despeito da diferença entre suas diferentes partes. Em uma realidade em que as diferentes partes do nosso corpo tivessem autonomia consciente, não veríamos a mão atacar o estômago pois entende que se o estômago funciona mal seu trabalho não vai ser feito, e o corpo não receberá nutrientes. Assim, se nos amarmos verdadeiramente, a despeito das nossas muitas diferenças, nossa pregação será muito mais eficaz, pois este é o maior sinal de que somos discípulos de Jesus. Não há ponderação ao verdadeiro amor e é impossível não ser atingido pela realidade de uma comunidade que é justa, por se amar. Onde há amor não há injustiça, então se nós nos amarmos verdadeiramente, a Igreja será uma comunidade justa, isso iluminará as trevas e não haverá saída para o mundo a não ser reconhecer que a lei de Deus é, verdadeiramente, boa para o homem.

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