Minhas filhas não atrasam minha vida

Minhas filhas não atrasam minha vida

Poucos sabem, mas me tornei pai aos 17 anos. Essa experiência, que para muitos pode parecer prematura, muitas vezes provoca surpresa e até um certo sentimento de “dó”, como se, por ter assumido essa responsabilidade tão cedo, eu tivesse perdido os melhores anos da minha vida. No entanto, cada situação de vida é única, com seus próprios desafios e alegrias. Para mim, graças a Deus e ao apoio dos meus pais, essa jornada foi muito especial. Ana Julia, nossa filha, é um presente de Deus; não poderia ter pedido por uma filha mais doce e amável. Aos 23 anos, Brunna e eu tivemos Maria Luiza, e aos 30, nossa pequena Lucy, que tem apenas 9 meses enquanto escrevo estas palavras.

Este breve texto busca desafiar a falácia contemporânea de que “filhos atrasam nossa vida” ou de que devemos “ser felizes, aproveitar a vida e só então pensar em ter filhos, e poucos”. Seria exagero dizer que, nos dias de hoje, gastamos mais com animais de estimação do que com filhos? Sinceramente, não tenho uma resposta definitiva, mas essa ideia não me parece tão absurda.

No contexto cristão, parece ter surgido a noção de que “apenas” casar, ter filhos e estar satisfeito com isso é insuficiente, como se fosse necessário buscar um chamado “maior”. Aos poucos, nos desconectamos da realidade ao buscar um senso de propósito heroico, uma espécie de “Evangelho MARVEL — os avivalistas da última hora”.

O Salmo 127:3 nos ensina que “Os filhos são herança do Senhor”, uma bênção e um presente de Deus, desafiando a ideia de que possam ser um “fardo” ou “atraso” na vida. Isso nos lembra da confissão de Westminster, que afirma: “O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre.” John Piper, em seu livro “Em Busca de Deus”, faz uma pequena, mas significativa adaptação: “O fim principal do homem é glorificar a Deus ao gozá-lo plenamente.”

Portanto, glorificar a Deus não se resume a grandes feitos segundo as métricas humanas, como livros, músicas, ministérios grandiosos ou milhões na conta bancária. As Escrituras nos apresentam um caminho mais elevado e, ao mesmo tempo, mais simples: a glorificação pela satisfação em Deus, por meio de Cristo. O evangelho operante em nossas vidas é a única forma de glorificar a Deus, pois somente ele pode satisfazer ou silenciar o ego humano, como ensina Tim Keller.

Minhas filhas, portanto, não são um atraso na minha vida, nem competem com a “obra de Deus” em meu coração. Acredito que foi Piper quem sabiamente disse: “Os filhos não são um obstáculo à missão; eles fazem parte da missão. Criar filhos no Senhor é tão importante quanto qualquer outra missão.” Ainda citando outros irmãos: “A maneira como criamos nossos filhos e conduzimos nossas famílias é uma das maneiras mais poderosas pelas quais demonstramos a verdade do evangelho.” – Francis Schaeffer.

Mesmo que, obviamente, este texto tenha uma ênfase em valorizar a formação e priorização da família, ele não trata apenas disso, mas também da ‘desmistificação’ da ideia de que uma vida cristã bem-sucedida se parece com uma história em quadrinhos de um de nossos heróis favoritos ou com um clássico filme de superação que vemos nos cinemas. Obviamente, o Evangelho é glorioso e heroico, mas não da maneira como imaginamos. O evangelho é heroico em Cristo, em primeiro lugar, e não em nós. Sem Cristo, não podemos fazer ou ser nada. E, por outro lado, a glória do evangelho está no ordinário.

Há alguns anos, o Senhor me despertou para a dicotomia que acontece em nossos dias. Preguei várias vezes a mensagem ‘Seja Comum’, com o mesmo teor que temos neste texto. Estou convicto do chamado das Escrituras para imitarmos a prática de vida de Cristo e não apenas desejarmos seus momentos de ‘holofote’ humano. Temos uma ideia gnóstica, dualista[1], impregnada dentro de nós e, sem perceber, nos afastamos do Cristo encarnado.

A verdade é que a grandeza do evangelho se manifesta na vida como ela é. Ser pai, cuidar da minha família, alimentar minhas filhas com o amor e a sabedoria que vêm de Deus, é parte integral da vida em Cristo que Deus me chamou para viver, o meu chamado. Este é o ambiente onde o evangelho é vivido e transmitido de geração em geração, e onde a glória de Deus se torna visível na simplicidade de um lar cristão ou em nosso trabalho cotidiano; a vida cristã bem-sucedida é aquela em que Cristo é exaltado em cada aspecto de nossa existência, desde os momentos mais grandiosos até os mais rotineiros.

Sua família não é um atraso. Seu trabalho não é uma perda de tempo. Seus estudos, sua faculdade, sua rotina de exercícios ou sua dieta saudável – tudo em sua vida é para a glória de Deus! Não estou dizendo que você deva se conformar com uma vida pacata e distante do mover do Espírito. Que a liberdade, nascida da sua satisfação em Deus, o torne disposto a abrir mão de tudo a qualquer momento; mas não por uma busca ilusória de uma vida heroica, e sim por satisfação em Cristo!            

Espero que este breve texto o encoraje a sonhar com sua família! Seus filhos, futuros filhos, seu marido ou esposa não são um atraso, mas uma maneira gloriosa de nos tornarmos mais parecidos com Deus, desfrutá-Lo e glorificá-Lo.


[1] A dicotomia do gnosticismo refere-se à visão dualista que divide o universo em dois princípios opostos e irreconciliáveis: o espírito e a matéria. Para os gnósticos, o espírito é visto como bom, puro e divino, enquanto a matéria é considerada má, corrupta e inferior. Essa perspectiva leva à crença de que o mundo material é uma criação defeituosa ou maligna, muitas vezes atribuída a um demiurgo, uma divindade inferior. Para nós, essa visão é considerada uma heresia porque contradiz a doutrina da criação bíblica, que afirma que Deus criou o mundo material e o declarou “muito bom” (Gênesis 1:31). Além disso, o gnosticismo nega a plena encarnação de Cristo, essencial ao cristianismo, ao sugerir que o divino não poderia assumir uma forma material, o que mina a base da redenção cristã através da vida, morte e ressurreição de Jesus no corpo físico.

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