Arte: Santo e Profano

Arte: Santo e Profano

“E a meu povo ensinarão a distinguir entre o santo e o profano e o farão discernir entre o imundo e o limpo” (Ezequiel 44:23)

Quando se fala de arte, é quase automático pensarmos sobre o que convém e o que não convém produzir, consumir e expor. A primeira coisa que precisamos entender é que santidade não é uma coisa que Deus tem, é algo que Ele é. Ele é santo. Isso faz parte da sua natureza e rege todos os Seus atos. Sabendo que Deus é santo, fica mais fácil definir o que é profano.

O dicionário diz que profano é o que não guarda sentido religioso, mas este autor pensa que a coisa é muito mais profunda do que parece. No versículo do livro de Ezequiel que abre este artigo, vemos uma ordem de ensinar ao povo a discernir entre o santo e o profano, ou seja, entre o que honra e está conforme a natureza santa de Deus e o que não está. E é nesse contexto que precisamos estabelecer alguns conceitos que foram mal aplicados ao longo da história, correndo o risco de considerar santas apenas coisas religiosas ou evangélicas.

Essa tendência que temos de considerar tudo o que está fora da vida religiosa como algo fora do alcance do santo foi herdada do pietismo. Rookmaaker, sobre os pietistas, diz que “ para a mentalidade pietista, a vida cristã restringe-se ao aspecto confessional da vida, à piedade e à devoção. Os evangélicos são os pietistas anglo-saxões de hoje. Para essa mentalidade, ser ativo neste mundo significa que você tem de fazer algo para o Senhor, ganhar almas e evangelizar. É comum ver evangélicos com a consciência pesada por serem professores, sapateiros, faxineiros ou artistas, pois não consideram que isso seja um trabalho cristão. Há uma dicotomia na vida, porque tudo o que não é cristão em sentido estrito, devocional ou diretamente ativo na esfera cristã, é considerado por eles mundano e negativo. É “do mundo”.

Essa é uma corrente de pensamento entranhada no imaginário evangélico do Ocidente (em especial na América Latina e África). É comum que coloquemos as artes do lado de fora da esfera cristã, entregando-a quase que completamente para o pensamento deste século. A arte só se torna aceitável para evangelismo ou culto. Mas paremos para pensar: qual a função litúrgica de uma árvore ou de uma cachoeira? Certamente a natureza se submete ao senhorio do Pai e presta sua adoração a Ele, mas de forma litúrgica, onde encaixamos as plantas, os animais, o pôr-do-sol e a chuva? Elas foram criadas por Deus e para Deus. Mas elas não têm função religiosa. A EXISTÊNCIA dessas coisas já testemunha a EXISTÊNCIA de Deus, o artista supremo. A Bíblia, em NENHUM MOMENTO, fala de forma condenatória sobre o nosso envolvimento com a cultura ou com as artes.

A partir do entendimento da vida e das palavras de Cristo, os primeiros reformadores afirmavam que Ele era o senhor sobre todas as coisas, não apenas dos períodos estritamente religiosos. Na Europa pós-reforma essa foi uma questão crítica para a Igreja Protestante e, talvez, só os artistas holandeses (como Rembrandt) souberam caminhar sobre esse princípio, talvez por sofrerem menos influência do puritanismo e do pietismo inglês. Assim, arte cristã não era somente o que dizia respeito diretamente à um tema religioso, mas reivindicou todos os aspectos da vida humana para Deus, fossem eles religiosos ou não, pois Deus não seria glorificado somente no momento do culto formal mas em toda a minha vida.

Apesar de parecer óbvio, esse ainda é um ponto sensível para muitos cristãos de hoje. É salutar reafirmar que a arte não é algo que simplesmente analisamos e avaliamos por seu conteúdo intelectual. É algo que precisa ser apreciado. As obras de arte do tabernáculo e do templo não estão lá somente pela sua função, mas também pela sua beleza.

Colocando uma lupa sobre a divisão entre o secular e o sagrado, temos Ulrico Zuínglio, em um extremo. Um reformador suíço que proibiu a arte na igreja, mesmo a produzida por cristãos e voltada para eles. Seu argumento era a centralidade única das Escrituras e do Sacramento, um conceito mal aplicado nesse contexto.

No outro extremo temos João Calvino, que entendia que tudo o que é bom, belo e verdadeiro procede da graça excelente de Deus. Calvino escreve:

“Quantas vezes, pois, [quando] entramos em contato com escritores profanos, somos advertidos por essa luz da verdade que neles esplende admirável, de que a mente do homem, quanto possível decaída e pervertida de sua integridade, no entanto é ainda agora vestida e adornada de excelentes dons divinos. Se reputarmos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade, a própria verdade, onde quer que ela apareça, não a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus. Ora, nem se menosprezam os dons do Espírito sem desprezar-se e afrontar-se ao próprio Espírito”5.

Uma linguagem evangélica não é sinônimo de santidade e uma linguagem cotidiana não é sinônimo de profanação. A cosmovisão do artista sempre vai ser expressa em sua obra, ainda que com uma linguagem não necessariamente religiosa. Se o princípio da ordem e da decência forem obedecidos e se o caráter santo do Pai é honrado (e não ofendido) através dos valores da obra, esta certamente não será profana. Nós cristãos somos um pouco diferentes de todos os outros, e existem coisas na estrutura em que vivemos que não aceitamos e, por isso, modificamos, subtraindo ou acrescentando. Assim, artistas cristãos SÃO DIFERENTES de outros artistas, e como diz Rookmaaker, é precisamente essa diferença que conta. Nós, trabalhamos a partir de um espírito e de um entendimento cristãos (fundados nos princípios trabalhados em Mateus 5, que é o modelo relacional do cristão com o mundo à sua volta). A nossa mentalidade e o nosso modo de lidar com as mesmas coisas que um ímpio lida, são diferentes. Essa mentalidade pode ser superficial ou profunda, pois somos humanos, mas certamente existirá um vínculo entre nossa fé e nossa obra. Essa fé é manifesta em qualquer tema, não somente nos religiosos. Esquecemos que Deus não somente salva o homem como também o ensina a viver.  Os cristãos estão a murmurar o tempo todo a respeito do avanço da mentalidade deste mundo, mas isso se deve à omissão dos próprios cristão. Se a cada Billie Eilish falando sobre depressão houvesse uma resposta cristã abordando esse mesmo tema de um ponto de vista compreensível além da bolha evangélica, talvez não estivéssemos tão atrasados em influenciar o mundo como estamos hoje. Não precisamos brigar por espaço, mas precisamos nos aproximar de todos os aspectos da vida humana, munidos da mente de Cristo, para assim não deixar uma lacuna na resposta ao espírito deste século. O artista não pode esperar o mundo ser renovado, a crise ser solucionada e os novos princípios culturais serem desenvolvidos. Temos de participar da vida hoje, e essa postura será, especialmente, importante no fim dos tempos, em um momento de extrema hostilidade ao cristianismo.

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